Tecnologia nas organizações: uma reflexão crítica

Para a Today, Augusto Galery oferece uma reflexão crítica sobre o papel da tecnologia nas organizações e a importância de uma abordagem ética

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A tecnologia digital tem assumido nos últimos 40 anos um papel central na sociedade e, particularmente, nas organizações. Sua utilização tem sido louvada por seu potencial, ao mesmo tempo que críticas alarmantes têm surgido em virtude de sua atual utilização. Tentemos refletir um pouco a respeito.

Gap digital

Uma das primeiras preocupações em relação ao avanço da tecnologia nas organizações é que nem todos têm igual possibilidade de utilizá-la.

O acesso à tecnologia tem um custo. Assim, enquanto pessoas com maior poder aquisitivo estão imersas em inovação, outras não possuem os recursos para adquiri-la. Isso se torna um problema sistêmico.

Ao serem expostos à tecnologia disponível nas empresas, esses dois grupos apresentam diferentes capitais tecnológicos-informacionais que os colocam situações desiguais de empregabilidade. Segundo a autora desse estudo, o contato com as ferramentas tecnológicas cria diversas “disposições introjetadas pelos indivíduos, [que orientam] suas ações e valores”, uma referência ao conceito de habitus proposto pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.

Para que tal gap seja preenchido, é necessário investir no alcance universal às tecnologias de informação e comunicação, a preços acessíveis, conforme descreve a estratégia de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, das Nações Unidas e que compõe a agenda para 2030.

Além do acesso, também é necessário investir em treinamento e desenvolvimento para o uso das ferramentas dentro das organizações, ao invés de presumir que basta oferecer a tecnologia para igualar as condições.

Barreiras na tecnologia

Além da problemática da exclusão digital,  frequentemente, o próprio design da tecnologia cria barreiras que restringem a capacidade dos usuários de maximizar seu potencial.

O caso mais claro disso é o das pessoas com deficiência. Indivíduos com dificuldades motoras, auditivas, visuais ou intelectuais podem precisar de adaptações para utilizar uma determinada tecnologia.

Os desenvolvedores têm demonstrado crescente preocupação com essa questão, incluindo ferramentas de acessibilidade em seus produtos. Um bom exemplo é o aparelho celular que tem evoluído continuamente para se tornar mais acessível. Recursos como controle por voz (o que facilita o uso para pessoas com dificuldades motoras ou cegas), leitores de tela (que podem ajudar pessoas cegas e servir de suporte para aquelas com dificuldades de leitura), ampliação do texto e tela em alto contraste são apenas alguns dos elementos que facilitam o uso por pessoas com diversas necessidades.

Os esforços para que uma tecnologia seja acessível a qualquer pessoa, independentemente de suas características, foram popularizados pelo conceito de desenho universal, proposto pelo educador Ronald Mace.

Ao mesmo tempo, existem produtos desenvolvidos especificamente para auxiliar pessoas com deficiência, conhecidos como tecnologias assistivas. Exemplos incluem aplicativos de tradução de Libras, como o Hand Talk e o VLibras, e sistemas de leitura de tela, como o NVDA.

As pessoas com deficiência, no entanto, não são as únicas que podem sofrer com as barreiras tecnológicas. Vieses na programação ou na concepção de tecnologias podem fazer com que partes significativas da população sejam prejudicadas, como é o exemplo do chamado racismo algorítmico

Tecnologia como controle e/ou substituição

Um terceiro ponto que contribui para o impacto negativo da tecnologia nas organizações é a percepção da tecnologia como uma estratégia de controle sobre as pessoas ou até mesmo como um meio de substituí-las.

A tecnologia tem sido empregada para regular as relações de trabalho, refletindo um preconceito cultural das lideranças em relação às suas equipes. À medida que se desenvolve uma tecnologia cujo objetivo é monitorar constantemente os trabalhadores, reforça-se a ideia de que a relação entre lideranças e pessoas lideradas é baseada na desconfiança. Essa noção contradiz um princípio básico da gestão de pessoas atual, que defende que o papel do líder é motivar e desenvolver para uma crescente autonomia nas atividades.

O impacto do uso intensivo das tecnologias de controle é a redução dessa autonomia, resultando em uma diminuição na iniciativa para a resolução de problemas e para a inovação. Ambientes altamente controlados são ambientes pouco propícios à criatividade.

Para complicar ainda mais esse cenário, as tecnologias têm sido usadas continuamente para substituir a mão de obra humana. Podemos citar como exemplos históricos o o caso dos bancários no Brasil e a recente greve de roteiristas nos Estados Unidos para a regulamentação do uso de Inteligência Artificial na indústria de entretenimento.

Portanto, parece bastante pertinente que haja uma resistência dos trabalhadores em relação ao uso da tecnologia.

Tecnologia como questão ética

Os pontos mencionados acima não têm a intenção de depreciar a tecnologia ou diminuir sua importância como força motriz para a inovação e a melhoria da qualidade de vida humana.

Como coloca Pierre Lévy, pensador francês conhecido por seu otimismo em relação à tecnologia, o atual estágio de desenvolvimento da tecnologia nos permite conceber uma inteligência coletiva que pode beneficiar toda a humanidade. Isso porque a tecnologia é uma ferramenta e, nesse sentido, é tão boa quanto o uso que fazemos dela.

À medida que avançamos para uma sociedade ética, com organizações que compreendem seu papel no cuidado social e pessoas que percebem seus vínculos indissociáveis com os valores humanos e coletivos, as tecnologias acompanharão essa evolução. Para uma tecnologia ética, precisamos de seres humanos éticos.

Augusto Galery, colunista
Augusto Galery

Professor e pesquisador em Psicologia Social e Sociedade Inclusiva.
 
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