Equidade salarial: lei muda, mas ainda falta ousadia nas empresas

As mudanças na Lei de Equidade Salarial instituem novos mecanismos de fiscalização e controle para o combate à desigualdade de gênero no ambiente corporativo, visto que boa parte das empresas ainda não investem em políticas efetivas

No Brasil, a igualdade entre os gêneros é prevista na Constituição Federal. O princípio, quando visto pela ótica da remuneração, visa garantir o pagamento igualitário aos profissionais que exercem a mesma função, independente da etnia, gênero, idade, orientação sexual ou qualquer outra distinção. Mas acontece que, na prática, a teoria é outra. No fim de 2022, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres recebiam uma remuneração 22% menor em comparação aos homens.

Agora, com as mudanças na Lei de Equidade Salarial, em vigor desde julho, as empresas vão ter de equilibrar a balança. Mas o fato é que, até aqui, poucas tinham essa preocupação formalizada em um plano de ação. De acordo como um levantamento da consultoria de estratégia organizacional Mercer, apenas 15% das companhias nacionais implementaram ações e políticas em relação ao tema, antes da lei, e 35% não tinham qualquer plano específico para garantir a equidade de gênero e a redução do gap salarial.

Como exceção à regra, a multinacional Natura, referência no mundo dos cosméticos, vem adotando iniciativas de combate à desigualdade de gênero e, desde 2018, procura garantir o pagamento igualitário a homens e mulheres nos mesmos cargos. Por meio desta iniciativa, a empresa ganhou visibilidade no Prêmio Think Work Flash Innovations 2022, do qual foi finalista. Neste ano, nenhuma empresa inscreveu um case de equidade salarial na premiação.

Natura luta contra a desigualdade

Desde 2020, a maior multinacional brasileira de cosméticos desenvolveu a política de equidade salarial com a Mercer, empresa de consultoria da área de RH. Para isso, foram analisados dados relacionados a fatores diversos, como salário, cargos, sexo e desempenho profissional. Desde a criação do projeto, a companhia se comprometeu a eliminar qualquer diferença de gênero na sua cultura organizacional até 2023 por meio do mapeamento e da criação de mecanismos específicos de gestão.

Além do campo do gênero, a Natura trabalha para colocar um ponto final nas diferenças salariais relacionadas à etnia e raça. A transformação também tem influência na admissão de novos talentos e foi aplicada em todas as marcas do grupo – Natura, Avon, The Body Shop e Aesop.

Ademais, a companhia parece entender a real importância de incentivar a presença das mulheres em cargos da alta hierarquia. Ao fim de 2022, a holding contabilizou mais de 52% de mulheres na liderança nas sedes da América Latina. Hoje, elas são maioria em todos os níveis da empresa, exceto o operacional.

A figura feminina é prioridade da companhia, que também tenta promover benefícios de corresponsabilização na criação dos filhos e ações de apoio às mulheres em situação de violência de gênero. As iniciativas atendem às colaboradoras, consultoras e representantes.

Onde as empresas podem agir

Esta perspectiva de mudança soprada pela Natura é bem vista pela consultora Monalisa Mororó, coordenadora de recursos humanos e mentora e desenvolvedora de líderes, que considera importante avançar em outros aspectos da desigualdade de gênero, além da disparidade salarial.

“As transformações podem vir por outros meios: pode-se aumentar o tempo da Licença-Paternidade para que o homem consiga passar mais tempo em casa apoiando a mulher nos cuidados com o filho, o que evita o desgaste. Até porque, ela pode ter medo de passar muito tempo longe das atividades, de se desatualizar ou até mesmo de ser desligada no retorno às funções, porque está fora do mercado há um certo período de tempo”, diz.

Para Monalisa, as empresas devem agir, sem esperar que o poder público dê o primeiro passo. “Há espaço não só para novas políticas públicas. É muito perceptível a disparidade salarial em algumas empresas. Mesmo mulheres com o currículo mais longo e especializado ganham menos do que homens, em alguns casos.”

Segundo a especialista, que acumula mais de 15 anos no mercado de RH corporativo, o problema se avoluma com outras disparidades. A cada 10 mulheres disponíveis no mercado de trabalho, por exemplo, apenas cinco conseguem emprego. Ao passo que sete entre 10 homens em idade produtiva estão empregados. E, quando estão empregadas, as mulheres cumprem a famosa jornada dupla: são as responsáveis pelo lar, onde põem a mão na massa e onde organizam tudo, assumindo a carga mental da casa.

A responsabilidade do RH

Não obstante, as práticas de contratação utilizadas pelo RH podem agravar ainda a disparidade.

“Existia uma cultura no RH para elaborar perguntas na seleção de emprego, como: ‘Com quem você deixa o seu filho para trabalhar?’. E este questionamento impactava diretamente a mulher, porque ela entendia que ter um filho poderia tirar suas chances de ser empregada. Mas estamos obtendo mudanças nas metas de RH, e retirando algumas perguntas da etapa de recrutamento”, diz Monalisa.

O respeito também é um ponto crucial. De acordo com a consultora, para que uma mulher seja respeitada no ambiente de trabalho, ela gasta mais energia que o homem. Ela precisa provar o que fala e deve ter firmeza para ser levada a sério. Existem também os casos em que a mulher disserta, e o homem a interrompe constantemente, às vezes para falar algo já mencionado, porque considera o seu discurso melhor – método conhecido por mansplaining.

“Às vezes, inclusive, o RH se interessa pelo potencial de uma candidata, mas tem que convencer o gestor que a mulher é uma melhor opção do que o homem”, diz Monalisa. “Na ascensão profissional, as mulheres enfrentam uma barreira muito maior. Em algumas mentorias, já ouvi depoimentos de mulheres que precisaram mudar o comportamento para assumir cargos de líderes. Elas não podiam demonstrar vulnerabilidade ou fraqueza”, afirmou Monalisa

Os ganhos com a equidade

Implementar um ambiente empresarial justo, inclusivo e diverso promove ganhos que ultrapassam o âmbito financeiro.

“Há ganhos relacionados à mudança de perspectivas e planos. Trazer ideias das mulheres em áreas ocupadas prioritariamente por homens amplia a visão e ajuda o crescimento da organização. Além de excluir os conceitos estereotipados, muitas vezes escondidos pelo machismo velado, a presença das mulheres auxilia na tomada de decisões mais flexíveis e empáticas, com impacto sobre diversidade e inclusão”, ressalta Monalisa. 

Para a consultora, há espaço não só para novas políticas públicas, mas para reorganizar as já existentes. Inserir a mudança como meta do CEO da empresa para colocar mulheres na liderança pode ser uma boa solução. Abraçar a inclusão e inserir mais mulheres pretas no comando, também.

A equidade precisa ser respeitada, implementada e valorizada. A presença das mulheres no mundo corporativo e nos estilos de liderança deve estar atrelada ao respeito e inclusão. É lei na Natura e é a lei da natureza – a lei de igualdade. Entre as metas da companhia para 2023, há destaque para a presença de 50% de mulheres no Conselho de Administração e nos cargos de diretoria.

“O RH pode ajudar na missão, criando políticas internas que propiciem a entrada das mulheres e adequando a maneira do gerenciamento dessa chegada. Ou seja, selecionar as perguntas adequadas e adicionar metas, porque a cultura da reconstrução só é posta à frente quando existe alguma meta envolvida. Por fim, inserir uma mudança de políticas internas aliada à um RH que saiba conduzir o processo seletivo com uma delicadeza e vontade de enxergar o verdadeiro potencial (e poder) da mulher”, finaliza Monalisa.

Entenda a Lei de Equidade Salarial

A Lei nº 14.611/2023 está em vigor desde 4 de julho de 2023, mas novas regulamentações foram adicionadas no fim de novembro. Elas aplicam punições e mecanismos de controle do que é feito, como o Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios e o Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios, medidas obrigatórias para empresas com 100 ou mais funcionários.

“O artigo 461 da CLT já proibia a disparidade salarial, mas a nova Lei de Equidade Salarial prevê outras obrigações. Uma delas é o envio do relatório semestral com dados tanto sobre a igualdade nas condições de trabalho como também com a porcentagem de homens e mulheres contratados, incluindo os cargos de liderança”, explica a advogada trabalhista Larissa Cavalcanti. 

“O reforço na fiscalização inclui ainda um canal de comunicação específico para denúncias anônimas. Caso haja descumprimento da lei, a multa incide em até 10 vezes o valor do salário pago ao trabalhador, e a empresa deve apresentar de imediato um plano de mudanças internas com medidas a serem adotadas, junto com metas e prazos.”

Para erradicar a desigualdade, a Lei de Equidade Salarial ainda determina que as organizações devem investir na capacitação profissional feminina e fortalecer a promoção e a ascensão no plano de carreira. Tudo isso se conecta ao conceito de “equidade” – o de fornecer meios adequados às pessoas para que elas tenham acesso às mesmas oportunidades que as outras.

Para conhecer mais pontos de destaque em inovação das empresas certificadas e saber quais são elas, acesse o nosso e-book do Think Work Flash Innovations 2023.

Comentários Equidade salarial: lei muda, mas ainda falta ousadia nas empresas

  1. Mário Almeida disse:

    Excelente abordagem! Não é necessária que haja alguma exigência do governo para que as empresas façam algo, a manutenção de um ambiente de trabalho equânime entre homens e mulheres é o básico. Toda iniciativa a respeito, deve ser acolhida e posta em prática.

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