Um passado presente no futuro do trabalho

Para a Today, Patrick Schneider escreve sobre o peso do passado na construção do futuro do trabalho

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Antonio Candido, ao tentar decifrar a obra “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda, definiu ser possível dar um certo balanço no passado sem cair em autocomplacência, ao ter consciência que sempre que revivemos eventos passados escutamos “as vozes” de uma geração, que embora diferentes entre si, vão tornando-se tão iguais que “desaparecem como indivíduos para se dissolverem nas características gerais de uma época”.

Há um termo do alemão, que em minha opinião, captura perfeitamente o que Antonio Candido tentou articular: o Zeitgeist, que traduzido literalmente para nosso idioma significa “o espírito do tempo”. A manifestação do conjunto de características de nossa sociedade atual constrói um mosaico com espectros artísticos, de vestimenta, pensamento político dominante, valores, crenças e mais uma infinidade de elementos sociais que compõem este Zeitgeist.

A função do trabalho permeou o espírito do tempo desde as raízes de nosso país. Se pensarmos no período das grandes explorações teremos, a partir do relato de Francisco Adolfo Varnhagen, primeiro historiador brasileiro, a descoberta de uma terra onde os habitantes transformavam tudo o que do solo brotava, lhes atribuindo utilidade. 

Avançando no tempo, teremos a demonstração laboral sob o signo da violência impresso na escravidão, chaga ainda em carne viva em nossa sociedade contemporânea e que impacta em certa medida todas as futuras gerações que no mercado de trabalho buscaram sua sobrevivência. 

Sucedendo as anteriores, temos o período pré-industrial, a industrialização e a atual denominada por Domenico de Masi como pós-industrial, fase esta em que segundo o autor, estamos mais organizados em termos laborais por nossos gaps do que por nossas fortalezas, o que acelera a subordinação algorítmica, abrindo as portas para uma grande transição em curso, onde o emprego tal qual conhecemos nas fases anteriores vai perdendo seus contornos de segurança e estabilidade.

Silenciosamente cada uma destas fases vão atribuindo contornos a um futuro que se aproxima. Não pela introdução de máquinas capazes de substituir as pessoas. Na verdade, pela forma como não paramos para pensar no legado de cada um destes momentos históricos nos capítulos que se sucedem. 

Recentemente, a libertação de 212 pessoas mantidas em cativeiro sob condições análogas a escravidão na cadeia produtiva de importantes vinícolas nacionais chocou o Brasil. Este fato realmente carece de atenção por submeter tamanho grupo de pessoas a condições indignas de sobrevivência. Minha pergunta é por que este tema não recebeu atenção antes, haja vista de que somente entre 1995 e 2020, segundo dados do Radar SIT, mais de 55 mil pessoas foram resgatadas de condições iguais ou piores que o grupo baiano libertado no Rio Grande do Sul.

A condição em que pessoas são submetidas ao trabalho forçado em troca de dívidas contraídas pelo ato de sua contratação, pelo sequestro de seus familiares, pela apreensão de seus documentos, pelo tráfico humano, ou ainda, pela promessa de um pagamento que nunca chega denomina-se escravidão moderna. A OIT estima que em 2021, 49.6 milhões de pessoas viviam nesta condição no planeta, o que significa 1 em cada 150 habitantes da Terra.

A partir destes números é muito difícil acreditar que em algum momento, direta ou indiretamente, não estamos consumindo produtos e soluções afetadas por esta realidade em nosso dia a dia. A meu ver o ponto de reflexão é se estamos atentos à cadeia produtiva das empresas em que trabalhamos. 

Durante mais de 20 anos trabalhando em Recursos Humanos presenciei, e, confesso que atuei algumas vezes, em atividades de fiscalização interna. Pessoas que não batiam o ponto, tentavam trabalhar em férias, recebiam ou não seu presente de final de ano, endereços cadastrados corretamente no sistema, currículos internos preenchidos com o mesmo rigor do realizado no Linkedin e mais recentemente a produtividade em home office. 

No entanto, nossa real contribuição ao futuro do trabalho, enquanto profissionais de gestão de pessoas, me parece residir em garantirmos que assim como a empresa, os demais stakeholders tenham clareza quanto a intencionalidade frente a erradicação desta realidade, não atribuindo a uma cláusula contratual, ou o checklist da área de compras esta função. 

Esta é uma excelente oportunidade para que a área de RH se engaje na marcha transformadora da agenda ESG, lembrando que a função do trabalho não reside apenas no “S” da sigla, mas sim em uma transversal que impacta o ambiente, por força da função indigna de elevar os efeitos da degradação da natureza e a governança: sempre que há uma exposição para o país, marca empregadora ou cadeia produtiva há reflexos nesta dimensão da agenda. 

Acredito fortemente que o ODS número 08 da Agenda 2030, “Trabalho Decente e Crescimento Econômico” vem para ajudar a frear e no médio prazo extinguir este tipo de situação do Zeitgeist que vivemos.

Pensar no futuro é saber que o único momento em constante transformação é o passado, que a cada passo e mirada evolutiva o ressignificamos, recodificando o que as vozes dos que vieram antes de nós entoavam na sociedade. 

A importância de repensarmos o ocorrido no tempo, em minha opinião, é assumirmos a frase entoada pelo genial Millôr Fernandes que garante que “o Brasil tem um grande passado pela frente” como uma verdade e compromisso individual de cada um de nós. 

<strong>Patrick Schneider</strong>
Patrick Schneider

Gestor de Recursos Humanos LATAM com 20 anos de atuação em companhias globais, autor e pesquisador na área de futuro do trabalho.

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