Quando organizações se tornam comunidades

Para a Today, Marcelo Cardoso escreve sobre como transformar organizações em comunidades que nutram um senso de pertencimento entre os integrantes

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Com a revolução industrial e a economia de mercado, o mundo experimentou uma transformação sem precedentes, incluindo o surgimento das organizações modernas e todo o desenvolvimento tecnológico e econômico que experimentamos como sociedade. 

Por outro lado, esse modelo levou à erosão das estruturas comunitárias tradicionais que foram responsáveis por dar senso de pertencimento, identidade e coesão social ao longo da história humana, levando a diversas consequências indesejáveis.

Essa foi “A Grande Transformação”, tema do influente livro de Karl Polanyi, e o impacto desta mudança foi criar um tipo de estrutura social, que temos hoje em dia, em que há um gap entre o universo do indivíduo, com seus direitos, deveres e necessidades; e do outro lado uma máquina social burocrática, impessoal e distante, onde os grandes temas complexos, da economia ao meio ambiente, são decididos longe dos olhos e vozes das pessoas. 

Perdemos a vitalidade e a pessoalidade de relações significativas de comunidade, que eram vitais para nós, e deveriam ocupar esse papel intermediário entre os indivíduos e o sistema mais abrangente.

Ao contrário dos dias atuais, nas estruturas comunitárias as trocas afetivas e de cuidado precediam as trocas financeiras. Havia um tecido social que protegia e distribuía os fardos da vida; por exemplo, uma criança não era apenas responsabilidade dos pais, era da comunidade o genuíno interesse de cuidar que essa criança fosse assistida e educada.

Uma das razões pelas quais essas grandes estruturas não dão conta do papel da comunidade foi sugerida pelo antropólogo britânico Robin Dunbar. Ele propôs que cada ser humano tem uma quantidade máxima de relações sociais significativas, que ele chama de capacidade de canal, e o número gira em torno de 150 relações. Em outras palavras, quanto maior as estruturas sociais, mais diluídas ficam as relações.

Pensando nesta equação, a empresa norte-americana Gore tem como política dividir a organização em unidades de negócio autônomas de 150 membros. Essa é uma forma de tentar manter as organizações enxutas o suficiente para que todos os membros possam se conhecer.

Mas não são as estruturas enxutas por si, ou a organização em pequenos times, ou ainda o aumento de conexão via redes sociais digitais, que garantirão que um grupo de pessoas se tornem uma comunidade vibrante e saudável.

A partir dos anos 70 e 80, impulsionados pela contracultura, muitas pessoas buscaram suprir essa necessidade de conexão social com a criação de comunidades alternativas, algumas de cunho espiritual e/ou ambientalista, e a maioria dos exemplos não foram bem-sucedidos. 

Algumas viraram seitas perigosas e outras se perderam no tempo e se dissolveram. A razão disso é que elas não promoviam o amadurecimento dos indivíduos, não tratavam as suas sombras e não sabiam como lidar com a diversidade de ideias e perspectivas que destoavam do restante do grupo. Da mesma forma, vemos hoje nas redes sociais sem nenhuma moderação um alto nível de virulência e toxicidade, a que somos expostos diariamente por excesso de conexão sem intimidade.

Creio que é tempo de retornamos para a ideia de construir comunidades, na sociedade e nas organizações, mas trazendo em cena todos os aprendizados e tecnologias sociais disponíveis para não cairmos nas armadilhas do “embolhamento”.

Na Chie, temos tido a experiência de construção de uma comunidade de integradores, envolvidos profissionalmente, engajados no nosso autodesenvolvimento e partilhando experiências de intimidade e relacionamento que vão além das trocas financeiras. 

Não é fácil, mas posso dizer que temos evoluído a cada novo ciclo. Também buscamos desenvolver jornadas com este propósito junto com clientes que estão alinhados a essa perspectiva para seu novo passo de maturidade organizacional. 

Uma das fontes que inspira os nossos modelos é a abordagem do veterano consultor Peter Block. Segundo Block, em uma comunidade que funciona, “mudamos a nossa atenção dos problemas da comunidade para as possibilidades de comunidade. As pessoas neste contexto tornam-se agentes engajados na nutrição da comunidade e assumem a responsabilidade de criar mudanças positivas, em vez de depender apenas de autoridades ou instituições externas.

A chave para transformar comunidades está em promover um sentimento de pertencimento e propriedade entre seus membros, e essa construção está fundamentada em seis princípios:

1. Pertencimento: Criar um sentimento de inclusão e pertencimento para todos os membros da comunidade. Isso envolve a construção de relacionamentos, conexões e um senso de propósito compartilhado.

2. Propriedade: Incentivar os membros da comunidade a se apropriarem para manter a responsabilidade pelo bem-estar e futuro do seu grupo. Isso significa mudar de uma mentalidade de dependência de autoridades externas para uma de empoderamento e participação ativa.

3. Responsabilidade: Promover uma cultura de responsabilidade na comunidade. Isso envolve responsabilizar indivíduos, grupos e instituições por suas ações e seu impacto na comunidade.

4. Dissidência: Reconhecer e valorizar diversas perspectivas e opiniões dentro da comunidade. Incentivar o diálogo aberto e honesto, mesmo quando envolve desacordo ou discordância. Essa troca pode levar a decisões e soluções mais robustas, e todos terão a certeza de que foram ouvidos, mesmo quando sua opinião não prevalecer.

5. Dons: Identificar e alavancar os pontos fortes, talentos e recursos existentes na comunidade. Isso envolve reconhecer e valorizar as contribuições únicas de cada indivíduo e grupo e encontrar maneiras de aproveitar esses dons para o benefício da comunidade.

6. Bem comum: Promover um compromisso coletivo com o bem-estar e o bem comum da comunidade. Isso significa equalizar e fluir nas polaridades entre as necessidades da comunidade como um todo e os interesses individuais, trabalhando em conjunto para criar uma comunidade próspera e sustentável.

A partir de todas as experiências que temos tido no fomento de comunidades, eu acrescento dois pontos que já foram citados, mas que enfatizo: a permeabilidade, ou seja, a capacidade da comunidade ser aberta para o afastamento e a aproximação de membros, e de ser penetrável para novas influências e composição com outras comunidades.

E finalmente, o compromisso dos membros com o autodesenvolvimento, garantindo que as pessoas busquem amadurecimento constante e evitem ao máximo que as projeções das carências e feridas emocionais da infância sejam projetadas nas interações da comunidade. Pessoas que se curam e se desenvolvem habilitam que todos os outros princípios ocorram na comunidade.

Nosso próximo passo como organizações e sociedade passa necessariamente pela restauração ou criação de comunidades saudáveis. Pensar em como habilitar essa transformação é o meu convite a todos!

<strong>Marcelo Cardoso</strong>
Marcelo Cardoso

Executivo com mais de 25 anos de experiência, tendo ocupado diversas posições em companhias de variados segmentos e países. É fundador e integrador da Chie.

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Comentários Quando organizações se tornam comunidades

  1. Bianca Azevedo disse:

    Excelente conteúdo! Acredito muito nesse processo de olhar para dentro como um pilar essencial para alavancar os demais! Parabéns!

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