A história dos mapas da Califórnia dos séculos 16 e 17 leva José Renato Domingues a refletir sobre como as empresas atuais podem aprender a inovar e evitar armadilhas históricas
Nós, que trabalhamos no mundo corporativo em pleno século 21, podemos tirar valiosas lições da arte da cartografia dos séculos passados. Veja o exemplo da construção dos primeiros mapas da Califórnia, que durante centenas de anos foi exibida como uma ilha da América do Norte, e entenda que lições são essas.
Nos séculos 16 e 17, a arte da cartografia exigia muitos peritos, bastante dinheiro, diversas viagens, técnicas de visualização de pontos elevados, como montes e montanhas, e tempo, muito tempo. E o mais impressionante, era necessário formar gerações de cartógrafos que se sucediam e combinavam suas observações e versões preliminares até montar as imagens completas de cada território.
Os espanhóis foram os primeiros a criar mapas do continente e eram hábeis nesse trabalho, que envolvia longas viagens de navio entre a Europa e a América. No caso da Califórnia, cada trecho da viagem levava até dois anos, pois era preciso contornar toda a América do Sul.
As expedições que resultaram nos primeiros mapas do sul da Califórnia identificaram a península da Baixa Califórnia e seu longo trecho de mar entre ela e o continente. Outras expedições, que estiveram no norte da região, registraram ilhas e rios que desaguavam no Pacífico e também davam a visão de que havia grandes porções de terra cercadas por água. A junção dos pedaços gerou a impressão de que havia uma enorme ilha próxima ao continente, que foi nomeada como Ilha da Califórnia.
A implicação prática disso se deu quando as primeiras expedições de ocupação do território chegaram em São Francisco para ocupar “a ilha” para, depois, partir para montar as missões e povoados “no continente”. Desenvolveu-se muita tecnologia para que os galeões espanhóis fossem desmontados após a longa viagem, colocados em lombos de cavalos para atravessar a Sierra Nevada e remontados para atravessar o Golfo da Califórnia, levando os viajantes até o continente.
Mas, eles subiam a serra, desciam e encontravam um longo trecho de areia (hoje conhecido como deserto de Nevada) e nunca alcançavam o tal golfo. Uma expedição seguida da outra se frustrou e muitas foram dizimadas pelo calor e a falta de recursos do deserto, que não existia nos mapas, mas os assolava. Até hoje se pode visitar pontos do deserto onde foram deixados os restos dessas expedições, ossadas humanas e navios inteiros desmontados na esperança de cruzar o mar que viam nos mapas, mas que nunca era encontrado.
Foram necessários mais de 80 anos de expedições, o envolvimento dos nobres cartógrafos espanhóis, líderes religiosos, discussões infindáveis nas cortes europeias até que um dos reis espanhóis decretou que havia dados e informações suficientes para que os mapas fossem mudados. E a Califórnia passou então a ser representada como parte integrante do território norte-americano. Décadas de decisões erradas, tecnologia desenvolvida em vão, desperdício de recursos e muitas vidas perdidas para que a representação da realidade fosse ajustada ao que era a real perspectiva daquele local.
Parece um exagero pensar por que demorou tanto, mas alguns fatores são relevantes para entender a resistência em ajustar as cartas. Primeiro deles, é a reputação que os espanhóis carregavam há séculos de serem exímios cartógrafos.
Depois, o tempo enorme que se passava entre as missões. Dois anos para ir, tempo enorme por lá procurando o golfo, mais dois anos para retornar e só então a informação do insucesso. Quando o ciclo de aprendizagem é muito longo, ou causa e efeito estão separados por anos, nossa capacidade de mudar a percepção diminui e nos tornamos mais difíceis de mudar.
Por fim, questionar os cartógrafos da época exigia coragem e audácia. Eles pertenciam à nobreza e eram próximos à corte espanhola. Questionar a autoridade e o status de quem tem papel de liderança na sociedade nunca foi e nunca será uma tarefa simples.
E quais são as lições para nós, que estamos acostumados a ciclos rápidos para aprender, com tecnologias instantâneas de comunicação e sistemas sofisticados de meritocracia que premiam quem inova e quem rompe com modelos ultrapassados em muitos setores e indústrias?
Uma das armadilhas está exatamente nessa velocidade e nos ciclos cada vez mais curtos de avaliação do sucesso. Estamos presos a um paradigma que avalia o trimestre, o ano fiscal e, no máximo, o período de gestão de um CEO e seu time executivo – que não dura muito mais que cinco ou seis anos. Isso nos impede de aprender com a história da empresa, do setor e perceber transformações estruturais nos mercados e no comportamento dos nossos clientes. Mudanças que tomam décadas para acontecer surpreendem a empresa e seus líderes porque parecem ter acontecido “de repente”.
Um exemplo bem ilustrativo foi a “disrupção” de mercado que a Uber e seus competidores trouxeram ao “inventar” a mobilidade através de aplicativos. Os pilares centrais que viabilizaram essa nova indústria já estavam em transformação havia décadas, desde o desenvolvimento da computação móvel, das redes integradas de satélite, do sistema GPS e das mudanças sociais que empurraram as pessoas para trabalhos temporários e informais, até a flexibilidade financeira para alugar e “assinar” bens como os veículos. Sem esses fatores, os carros por aplicativos não seriam possíveis. Mas ninguém acompanhava essas mudanças enquanto elas aconteciam isoladamente.
A história dos mapas da Califórnia nos alerta ainda para quanto do nosso tempo e dedicação estão sendo investidos em sair das nossas empresas, ir para outros ambientes de negócios e ser capazes de retornar com aprendizados que nos levem a propor inovações em nossas próprias indústrias. É fundamental conviver com inovadores em hubs de start-ups, viajar a mercados que estejam adotando novas práticas comerciais, visitar colegas de outros setores para entender seus desafios e como os estão enfrentando, gerando insights para nos ajudar a superar nossas próprias limitações. É preciso sair da nossa bolha e explorar o território alheio.
Por fim, não espere que décadas de missões fracassadas sejam o único fator para convencer as autoridades e os líderes conservadores em sua empresa de que algo precisa mudar. Provoque a mudança, seja questionador, busque dados e informações para basear sua preocupação. Seja pioneiro em duvidar que só existem aquelas maneiras de se fazer as coisas. Como provoca o especialista em inovação, Pascal Finette, seja um inovador radical.E para quem ficou curioso com os mapas antigos da Califórnia, há uma rica coleção de mapas hoje tutelada pela Universidade de Stanford que merece uma visita, mesmo que seja virtual. Lá, é possível perceber essa evolução do mapeamento do território ao longo de mais de 200 anos.