A razão de ser do trabalho e o significado da vida

“Trabalho é uma escultura no tempo”, escreve Carlos Netto neste artigo em que reflete sobre o papel do trabalho na realização humana

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Somos uma espécie singular caracterizada pelo trabalho. O verbo trabalhar exige e, ao mesmo tempo, testa nossa capacidade de concatenar ideias, articular e aplicar aquilo que projetamos.

Além disso, o trabalho se tornou a ferramenta mais poderosa para nos adaptar ao ambiente e exercer alguma influência sobre ele. Se faz frio, criamos um casaco para nos aquecer. Se estamos diante da água, produzimos um pé de pato para nadar mais rápido. Caso o desejo seja voar da belíssima Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, construímos uma asa delta.

Assim somos. Nos adaptamos e transformamos a natureza por meio da nossa capacidade inventiva. Tal habilidade vai além das técnicas necessárias para a sobrevivência. É uma condição para a realização humana, diante da consciência de que nos falta algo. Por isso, lançamos uma ponte entre o desconhecido e a capacidade de desvendar o que nos desafia.

Em outras palavras, todo trabalho carrega em si o potencial de uma carga poética de quem vai do imaginativo ao concreto, do ideal ao material, criando soluções em nível individual e coletivo. 

Quantas vezes fomos estimulados a refletir sobre o significado do trabalho na escola e em nossa formação?

É raro ver o tema nos currículos escolares. Imagino o impacto no desenvolvimento se, ainda no ensino básico, a criança descobrisse que o trabalho do pai, da mãe, dos avós e familiares tem o desafio de tornar algo melhor, bem como a capacidade de transformar a vida de alguém. 

Muito do que aprendemos na escola vai para o porão da memória. Não utilizamos nunca, salvo para ser aprovado, ou não, em determinada prova. Por outro lado, o trabalho nos acompanhará ao longo de toda a existência. Ter consciência do seu significado – e sua relação com o sentido da vida – certamente nos daria mais autonomia sobre o que fazer ou não. Isto é, não ficaríamos fragilizados ou submetidos a tantos desmandos sistêmicos e institucionais. 

No semestre passado, ministrei aula para cerca de 300 alunos de graduação. Nenhum deles tinha um plano de carreira. Todos já estavam na segunda metade do curso, muitos já estagiavam ou trabalhavam e, para alguns, faltava menos de um ano para a formatura. Elaborar um plano de carreira era novidade para aqueles jovens repletos de dúvidas sobre seus rumos. 

Ser protagonista da própria existência demanda planos pensados e diligentemente construídos. Como escreveu Maquiavel em “O Príncipe”, devemos desenvolver a virtú (virtude) em planejar e executar bem aquilo que foi projetado. Ou seja, quanto maior nossa virtude, menos frágeis seremos diante daquilo que se chama fortuna – variáveis que não controlamos. 

Aos alunos, ofereci a oportunidade – e experiência – de elaborarem os seus planos de carreira. Transformamos a realidade porque estamos destinados a sonhar o mundo, assim como transformamos nossas vidas profissionais porque é parte do nosso dever sonhar aquilo que almejamos ser. Cervantes pontuou em “Dom Quixote”: “sei que eu sou, sei quem eu posso ser, se desejar.” Há um ser projetivo latente em nós. 

A construção daquilo que somos é resultado de uma série de pequenas e grandes escolhas, conscientes ou não. Entramos numa livraria e escolhemos um determinado livro. Ouvimos uma música repetidas vezes, enquanto outras não deixam a menor marca. Internalizamos uma melodia. Guardamos palavras, frases e parágrafos. Construímos vínculos com outros seres a ponto de sentirmos saudade. Enraizamos memórias para viver nelas uma eternidade de lembranças. Tudo isso nos constitui e, assim, vivemos nosso destino, onde se encontra o trabalho com sua carga simbólica e concreta. E esse destino não tem que ser necessariamente tensão, infelicidade e perda de autonomia. 

O trabalho é uma escultura no tempo, é parte da nossa existência e não devem existir fraturas entre aquilo que somos e a qualidade com a qual fazemos algo. A rotina e o agir mecânico estão aquém daquilo que podemos ser, como a condenação de Sísifo diante da montanha e a pedra como sina. 

Civilização é, para Freud, o somatório das realizações que distinguem nossas vidas. Assim, nada estimula mais nossas possibilidades civilizatórias do que as elevadas construções de sentidos humanos elaboradas por nós. 

Realizações intelectuais, científicas e artísticas lastreadas pelas ideias brotam de forma singular e, dessa forma, constroem a riqueza da diversidade humana. Talvez nossa crise civilizatória esteja na balança entre esse anima (alma vivente e criativa) ou cansaço (entrega ao que não faz sentido) na vida e morte que se decide dentro de cada um de nós, a cada instante. Mas, no final das contas, todo o trabalho pode ser um triunfo da vida repleta de sentido.

Carlos Netto


Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e autor de “A arte nos sonha”. Foi diretor do Banco do Brasil por 11 anos, além de membro de Conselhos de Administração de várias organizações.

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