Companhias a partir de 100 funcionários devem divulgar de maneira transparente seus dados salariais – mas a privacidade dos trabalhadores não pode ser ferida
Com Plinio Higasi*
A recente promulgação da chamada Lei da Igualdade Salarial, a lei 14.611/2023, publicada em 3 de julho e regulamentada no início de dezembro, representa um marco na luta pela igualdade de gênero no ambiente de trabalho no Brasil. Ela introduz mecanismos significativos para assegurar a equidade salarial entre homens e mulheres, que vinham se distanciando ainda mais no campo da remuneração – dados liberados pelo Dieese no final de 2022 mostram um aumento de 22% na diferença entre os proventos de homens e mulheres.
A lei vem para reforçar preceitos fundamentais da Constituição Federal do Brasil, que já prevê a proteção da dignidade da pessoa humana e a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou discriminações. Esse reforço é extremamente nobre, uma vez que objetiva abordar e corrigir disparidades de gênero, proporcionando transparência, mecanismos de ação e fiscalização.
O cenário pode ser desafiador, no entanto, para empresas a partir de 100 funcionários, pelo cruzamento entre a nova legislação e a Lei de nº 13.709/2018, ou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Lei de Igualdade Salarial vs LGPD
A Lei de Igualdade Salarial e seus subsequentes regulamentos – o Decreto nº 11.795 e a Portaria nº 3.714 – estabelecem a obrigatoriedade de que as informações salariais de uma organização sejam divulgadas em detalhes, em um esforço para erradicar discrepâncias baseadas em gênero e permitir a instituição de um protocolo de fiscalização.
Embora progressistas em sua essência, essas disposições levantam questões pertinentes à privacidade e à segurança dos dados dos empregados. Há cinco anos, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) determinou diretrizes para a coleta, o uso e o compartilhamento de informações pessoais, enfatizando a anonimização de dados e a preservação da privacidade.
A divulgação de dados salariais detalhados pode, inadvertidamente, ir ao encontro desse princípio, expondo dados pessoais, e mesmo dados sensíveis dos trabalhadores, gerando um conflito potencial com as diretrizes da LGPD.
Mesmo que a intenção da Lei 14.611 seja nobre, é imperativo equilibrar a necessidade de transparência com a proteção da privacidade das pessoas. As empresas devem encontrar maneiras de cumprir as exigências da Lei da Igualdade Salarial e ao mesmo tempo se manter fiéis aos princípios de proteção de dados.
Este é um exercício delicado de equilíbrio, que exige soluções inovadoras e criativas no tratamento de dados para garantir conformidade com ambas as legislações.
Camadas de complexidade
O Decreto 11.795, de 23 de novembro de 2023, e a Portaria 3.714, editada um dia depois, complementam a Lei da Igualdade Salarial, ao fornecer uma estrutura mais detalhada para a implementação de suas disposições. Juntos, definem os mecanismos pelos quais as empresas devem reportar seus dados salariais, e delineiam os procedimentos específicos para a coleta e análise desses dados.
É evidente que ambos os regulamentos são fundamentais para a efetiva aplicação da Lei 14.611, mas também adicionam camadas de complexidade no que diz respeito à proteção de dados.
Cabe às empresas adotar recursos e práticas robustas de anonimização e segurança de dados para garantir que a divulgação de suas informações salariais cumpra ambas as legislações. É possível, por exemplo, lançar mão de tecnologias de processamento de dados avançadas capazes de analisar informações sem revelar as identidades individuais a elas atreladas.
À medida que buscam se adequar a ambas as exigências, as organizações podem contar – certamente terão necessidade – com assessoria jurídica especializada em direito digital. Profissionais do direito aplicado à tecnologia, nesses casos, terão como função auxiliar as empresas a navegar neste quadro complexo, orientando e apoiando as empresas nesse processo de adaptação.
Mas, para além dos desafios, a coexistência da Lei 14.611 com a LGPD e as demais normas de proteção de dados apresenta também oportunidades para as empresas demonstrarem compromisso com a igualdade de gênero e a privacidade dos dados.
*Plinio Higasi é sócio do escritório HSLG Advogados