Marcela Lázaro analisa como o período de gratificações pode intensificar o risco de vício em apostas online — e os impactos no trabalho
À medida que o ano se encerra, muitas pessoas buscam resolver pendências acumuladas para iniciar um novo ciclo de forma organizada. Nesse período, é comum o recebimento de valores extras, como o 13º salário e horas adicionais. Esse cenário, aliado à ampla oferta de apostas online, cresce o envolvimento de trabalhadores com plataformas de jogos de azar e apostas — as chamadas bets, como o popular “tigrinho”.
Os jogos de azar ativam o sistema de recompensa cerebral, liberando dopamina tanto na vitória quanto na expectativa de ganhar. Essa dinâmica cria um ciclo vicioso, intensificado pelo fenômeno do “quase ganhar”.
Campanhas publicitárias massivas em transportes públicos, nas ruas e em anúncios rápidos no celular prometem dinheiro fácil.
Somada à facilidade de acesso via celular, computador e Pix, essa exposição torna o comportamento compulsivo ainda mais perigoso.
Essas plataformas já atraíram mais de 52 milhões de brasileiros em cinco anos, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva. Entre os apostadores, 45% relataram prejuízos financeiros e 41% aumento da ansiedade.
Um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) aponta que 10,9 milhões de brasileiros com mais de 14 anos já jogam de forma a gerar problemas emocionais, familiares, econômicos ou profissionais.
Desses, cerca de 1,4 milhão apresentam um padrão compatível com o diagnóstico de transtorno do jogo, caracterizado pelo desejo incontrolável de jogar, mesmo diante de perdas significativas.
Consequências do vício em jogos online
O vício em apostas digitais afeta diversas áreas da vida do apostador:
- Financeira: risco de endividamento extremo, incapacidade de pagar contas básicas, dependência de terceiros ou empréstimos, e até perda de bens;
- Profissional: queda de produtividade, erros frequentes, dificuldade para cumprir prazos, aumento do presenteísmo e risco de acidentes de trabalho. Em alguns casos, o trabalhador pode provocar o próprio desligamento;
- Social: conflitos familiares, afastamento de amigos e problemas conjugais são comuns entre apostadores compulsivos;
- Psicológica: a exaustão mental pode evoluir para insônia, depressão, crises de ansiedade e, em casos graves, pensamentos suicidas. O endividamento tem forte impacto no adoecimento mental;
Reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença, o vício em jogos de azar está na Classificação Internacional de Doenças (CID), como mania por jogos e apostas (CID-10, código Z72.6) e jogo patológico (CID-10, código F63.0).
A CID-11, em vigor desde 2022, trouxe mais precisão diagnóstica para o transtorno do jogo. Ele é caracterizado por um padrão persistente de comportamento em atividades de aposta, marcado pela perda de controle sobre o tempo, a frequência ou o valor investido, a priorização das apostas em detrimento do trabalho, dos estudos ou da vida social, assim como a persistência do comportamento mesmo diante de prejuízos graves.
É importante ressaltar a necessidade de uma avaliação médica que possa distinguir o uso frequente de um quadro clínico de transtorno do jogo.
Impactos na vida profissional
No Brasil, os reflexos já são perceptíveis no ambiente de trabalho. Segundo levantamento do Intercept Brasil, com base em dados oficiais, os pedidos de auxílio-doença por vício em jogos aumentaram de 11 para 276 casos entre junho de 2023 e abril de 2025 – salto de 2.300%.
Os impactos podem ser sutis no início, mas tornam-se evidentes com o agravamento do problema. Entre os sinais observáveis por colegas, lideranças e RH estão atrasos frequentes, queda na performance, isolamento social, uso excessivo do celular, irritabilidade, pedidos de adiantamento e empréstimos internos.
O papel do RH: acolher, prevenir e orientar
O RH tem um papel estratégico na prevenção dos impactos causados pelas apostas online. A primeira frente é a conscientização: ações educativas — como campanhas informativas e rodas de conversa — ajudam a esclarecer os riscos e efeitos do vício em jogos.
Embora não exista um único momento ideal para abordar o tema, eventos corporativos com grande adesão, como a Semana Interna de Prevenção de Acidentes de Trabalho (SIPAT) ou ações conjuntas com a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), são oportunidades valiosas. No fim do ano, é especialmente recomendável reforçar iniciativas sobre o uso consciente do dinheiro.
Além da conscientização, é essencial oferecer orientação financeira aos colaboradores, especialmente por meio de programas de assistência ao empregado (PAE), que podem incluir consultoria jurídica e apoio na organização das finanças.
Essas iniciativas ganham força quando complementadas por ações permanentes, como workshops de educação emocional e financeira, e materiais que incentivem práticas saudáveis no dia a dia. Para alcançar todos os públicos, os conteúdos devem usar linguagem acessível e respeitar o nível de escolaridade dos trabalhadores.
Criar um ambiente acolhedor é fundamental para que os colaboradores se sintam seguros ao buscar ajuda, sem medo de julgamento ou represálias. Para isso, lideranças devem ser capacitadas a identificar sinais de vício e agir com empatia, encaminhando os colaboradores para apoio profissional.
Por fim, o RH pode atuar diretamente com acolhimento e escuta ativa, e encaminhando para atendimento especializado quem reconhece a necessidade de ajuda. A empresa pode direcionar o trabalhador para os seguintes recursos:
- Médico do trabalho: acompanhamento e encaminhamento para tratamento especializado;
- Serviços de saúde mental corporativos: psicólogos e psiquiatras, presenciais ou online;
- Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): referência no SUS para tratamento de transtornos mentais e dependências;
- Programas do convênio médico: muitas operadoras oferecem apoio multiprofissional específico para esse tipo de demanda.
O crescimento das apostas esportivas no Brasil representa um desafio concreto para a gestão de pessoas. Ignorar o tema pode resultar em queda de produtividade, aumento de afastamentos e risco financeiro para o negócio.
Mais do que identificar sinais, é preciso agir. O RH deve promover uma cultura organizacional baseada em segurança psicológica, acolhimento e informação clara. Apoiar sem julgamentos é essencial — reconhecendo o vício como uma condição que exige tratamento, empatia e ação conjunta.




