Descubra como as metáforas de Cervantes e Nietzsche sobre o autoconhecimento e as potencialidades humanas podem transformar sua vida pessoal e profissional
Miguel de Cervantes, no clássico Don Quixote de La Mancha, colocou a seguinte ideia na fala do protagonista: “Sei quem eu sou. Sei quem eu posso ser, se desejar.” Nem Freud descreveu melhor nossa natureza humana.
A primeira parte da afirmativa – “sei quem eu sou” – revela a construção do autoconhecimento, a percepção lúcida de si mesmo, nossa identidade, aquilo que nos é singular. Envolve também a consciência das nossas forças e fraquezas, ganhos e perdas de potência, pois não somos onipotentes.
A maior tragédia humana é acreditar na ilusão da onipotência, situação de grave ausência de limites como base de autoenganos. Diante das seduções do poder que toda estrutura organizacional oferece, com seus rituais, cargos e prestígios, eis um risco real que merece ser medido na vida corporativa. Há quem conheçamos melhor quando lhes é dado algum poder institucional.
A segunda parte da frase proposta por Cervantes está relacionada à visão projetiva, nossas potencialidades. Ninguém está pronto. A visão do “vir a ser” sempre caberá como estímulo ao processo de desenvolvimento pessoal e profissional. O espaço potencial é potencial, corresponde à falta. O movimento da vivência cultural é absolutamente necessário para preenchê-lo.
Nietzsche relata três metamorfoses do ser humano, abordando como o “espírito se transforma em camelo, o camelo, em leão e o leão, em criança”. Penso nessas imagens diante da ideia de “sei quem eu posso ser”. O camelo é o animal que carrega o peso dos valores estabelecidos, os fardos da educação, da realidade crua e, ao mesmo tempo, que abre possibilidades daquilo que está além dela. Nele estão toda bagagem da moral e da cultura. Ele vai ao deserto, onde se transforma no leão. Rompe, então, com os modelos, pisoteia os fardos e dirige a crítica aos céus e aos valores estabelecidos, que se mostram mais barreiras do que pontes.
Cabe ao leão se tornar criança. Brincar e começar novamente, criando novos valores, princípios de avaliação e caminhos. Propor olhares e possibilidades distintas. Na criança estão as possibilidades de um bom (re)começo. Sem a chance de começar bem, seremos camelos conformados ou leões revoltados. E isso não ajuda. Apenas a criança nos salva na sua vontade de brincar, criar e inventar aquilo que seus novos olhares propõem. Tatear o mundo com alguma delicadeza, mas capaz de transformá-lo.
“Desejar” significa que não cai do céu. É construído. Demanda suor, trabalho árduo, projeto, persistência e pulsão de quem se move de forma incansável. O espírito vai na frente e grita para que o corpo o acompanhe.
Isso vale no plano individual e se realiza também na esfera organizacional. Nenhum empreendimento produz resultados sustentáveis sem essa perspectiva visionária, que carrega inovações, mudanças incrementais e novas possibilidades de fazer. Por meio desses olhares, fruto de nossos sonhos, de nosso brincar de inventar possibilidades, formamos parte essencial da nossa experiência cultural. Aquilo que de melhor podemos realizar, tendo consciência disso.
Don Quixote não se apegava ao já vivido, como fetiche nostálgico. Vamos aprender para empreender. Não queremos que a nossa convivência produza iguais. Viva a diversidade de olhares e de vivências singulares e distintas.
Vamos sempre bailar as diferenças que nos constituíram em todo e qualquer mito da criação já inventado por nós.
Tempos atrás, comprei o livro “O futuro do livro”. Vários pensadores foram convidados a imaginar como será o futuro com o livro e o livro com o futuro. Meu filho de 8 anos, do rol de 30 autores, reconheceu Ziraldo, o amigo Ricardo Guimarães e Gilberto Gil, mas reclamou da ausência do Maurício de Souza. Foi em Gil que ele me pediu para explicar o ponto central oferecido pelo poeta: o livro “oferece amplitude e profundidade”.
Realizar nossas potencialidades é essa capacidade visionária, ampla, e, para tal, é preciso ter repertório, profundidade constituída entre prazeres e dores. Meu filho leu Gil com um recorte que talvez eu não fizesse. A criança diante do camelo e do leão que me habitam.
Engana-se quem vê em Don Quixote um lunático. Cervantes nos entregou um personagem com forte resistência ao habitual, mesmice que nos consome, e fazendo da estrutura organizacional o mais aprisionante de todos os espaços.
Don Quixote desafia transformá-la. Para tanto, inventa gestos, propõe novos olhares. Por vezes, enxerga o que poucos tinham capacidade de ver. “E aqueles que foram vistos dançando foram julgados como loucos por aqueles que não podiam escutar a música”, como escreveu Nietzsche.
Lembro de Steve Jobs tentando aprovar a primeira grande peça publicitária da Apple, no intervalo do Superbowl nos anos 1980. Epopeia de um visionário que, com os altos e baixos dos resultados da empresa, preservou os atributos da marca no imaginário coletivo. Assim como Jobs, Dom Quixote pensava e entregava sua subjetividade para além dos limites do padrão.
Lembre-se: são das pessoas que as hipóteses brotam. A graça do mundo está nas possibilidades das nossas potencialidades.
Dedicado ao amigo Valter Rosa, que luta como uma criança pela vida: repleto de amanhãs, apesar da realidade.
Que coisa mais linda de se ler. Um convite a mergulhar em nosso mais profundo e nos (re)conhecer. Dom Quixote nos representa e apresenta novas formas de seguir. Obrigada por esse texto, Neto. Minha criança segue renovada.
Parabéns pela reflexão e pela lucidez Carlos. Seu texto me instigou a reler Cervantes e Nietzsche sob um outro olhar. Obrigado!
Obrigado também equipe do Think Work por nos proporcionar um espaço de ideias e contribuições críticas, sempre muito importantes.
Um grande abraço
Maíra, o camelo, o leão e a criança nos habitam. É preciso estar atento. Há momentos que sinto precisar do leão, mas em outros momentos ele aparece quando ali deveria estar a criança. Nem sempre o contexto nos permite ser a criança que desejamos e lá vamos nós sendo o camelo na esperança que um dia a criança possa contribuir com novas práticas. Assim vamos…bom te ver aqui. Meu abraço!
Marco, obrigado. Literatura é repertório. Como precisamos de repertório de qualidade hoje em dia! Será ótimo poder conversa com você sobre releituras de Cervantes e Nietzsche. Os textos possuem a capacidade de nos lerem em momentos singulares de nossas vidas. Se tornam originais e fazem das releituras novas vivências. Meu abraço!
Bom dia…eu não tenho domínio de conhecimento algum, não sou nenhum graduado, mas ler este texto com muito esforço para entender, consegui abrir minha mente e renovar minhas forças no sentido de recomeçar, construir, acertar errar ..faz parte do nosso crescimento… obrigado.
Como é acolhedor vir a este Universo simples com esta jóia para nos presentear!Amei.Lembrei que ganhei de meu pai esta enciclopédia de Cervantes.Sou idosa mas éra a joia de uma menina pobre. Gratidão
Amei o texto, amo essa frase de Nietzsche, amo Don Quixote.Fiquei muito feliz pela abordagem, pois me identifiquei , imensamente.
Tiarles, somos aprendizes, educandos-educadores e educadores-educandos. Fico feliz que o texto tenha dando essa amplitude que vocês aponta. Sabe, tem horas que sou camelo, em outros momentos leão e, vez por outra, criança. Somos tudo isso dentro da gente. É preciso alguma lucidez para identificar esses momentos. Ajuda muito nos ajustes que devemos fazer…obrigado pela mensagem. Abraço,
Conceição, é lindo ler ou reler Cervantes prestando bem atenção nas frases do protagonista. “O medo é que faz que não vejas, nem ouças porque um dos efeitos do medo é turvar os sentidos.” O mais famoso: “uma andorinha só não faz primavera.” Outro que gosto muito: “Cada um é filho das suas obras”. E não é mesmo? Abraço,
Kátia, tem um psicanalista chamado Cristopher Bollas que estuda aquilo que escolhemos nos identificar. Ele diz que isso que internalizamos se torna o nosso idioma. Cada indivíduo, segundo ele, tem um idioma singular. Gosto dessa ideia que trazemos algo de fora, que atribuímos valor, para dentro de nós mesmos. É o que nos alimenta. E, através do nosso repertórios, nos ajuda a alimentar o mundo. Obrigado. O seu comentário me fez pensar isso. Abraço,