Todos recebemos um convite para buscarmos mais autenticidade, mas as organizações não têm espaço para esse chamado, escreve Marcelo Cardoso para a Today
“Saiba: todo mundo foi neném / Einstein, Freud e Platão também / Hitler, Bush e Sadam Hussein / Quem tem grana e quem não tem” (Saiba, de Arnaldo Antunes).
Em nossa entrada para a maturidade, ocorre um convite para uma mudança bastante significativa em nossas vidas, mas relativamente poucos de nós aceitamos esta oportunidade. Talvez essa seja a tragédia mais relevante dos nossos tempos, pois a sociedade não reconhece a importância deste processo, e as organizações – das mais capitalistas até as da sociedade civil – ignoram este ponto em seus programas de desenvolvimento. Pior ainda, muitas vezes elas trabalham contra esta mudança, como veremos a seguir.
Estou falando de uma mudança de movimento no sentido da nossa busca por resultado e significado. Antes projetada para fora, algo nos avisa para invertermos essa busca e começarmos a olhar para dentro. Para isso, precisamos examinar o “roteiro de teatro” pela qual passamos toda vida ensaiando e atuando como se fosse uma verdade absoluta.
Não há um momento e uma forma exata para este convite ocorrer. Pode ser uma crise no casamento, pode ser uma doença ou um burnout, uma demissão ou falência, ou então pode ser uma inquietude, uma experiência espiritual, um novo relacionamento. E esse convite pode vir cedo, na faixa dos 30 anos, pode vir entre os 40 ou 50 anos, ou mais tardiamente, a partir dos 60 anos.
Se a forma do convite não é clara, as razões e os seus desdobramentos estão mais ou menos mapeados, tanto por pesquisadores em psicologia do desenvolvimento como também por diversas tradições filosóficas e espirituais encontradas em muitas culturas.
O que está por trás desse impulso para esse processo de autoconhecimento é o fato de que o desenvolvimento interior da nossa primeira metade da vida é praticamente “involuntário”: é um movimento não refletido por nós, apenas seguimos um roteiro que é escrito nos primeiros 7 anos de vida, e, portanto, em grande parte inconsciente. Então, ao alcançarmos a maturidade, este script fundamental deixa de fazer sentido, e temos uma oportunidade de investigar essas premissas que moldam a nossa personalidade e nossas escolhas para, a partir daí, fazermos escolhas mais autênticas, conscientes e livres, que nos revitalizam para outro tipo de realização em vida.
Como falei, a tragédia é que poucos se permitem aceitar este convite e a fazer este mergulho transformador. E isso não só é uma pena do ponto de vista pessoal, como também do ponto de vista coletivo, sobretudo quando esta recusa vem de pessoas em posições de liderança e influência na sociedade, pois as consequências são amplificadas para todo seu entorno e para a sociedade. Essa omissão coletiva é um componente importante que ajuda explicar por que não resolvemos as crises ambientais, sociais e existenciais do nosso tempo, pois o ser humano desconectado de si mesmo está desconectado do todo, preso por amarras de interesses menores, e sua atuação no mundo tende a deixar um rastro maior de entropia que afeta aos demais, mesmo que bem intencionado.
As organizações têm tido um papel bastante importante no reforço dos nossos scripts e, consequentemente, desencorajam esse processo de transformação. Em verdade, elas se beneficiam de um tipo de relação com as pessoas com base apenas em benefícios de status, poder e ganhos materiais, como uma moeda de troca pela energia e condescendência das pessoas, semelhante ao que as máquinas faziam com as pessoas em Matrix.
Ainda mais chocante, há artigos que demonstram como muitas organizações atraem e valorizam líderes narcisistas. Nos Estados Unidos, estima-se que 5% da população é considerada narcisista. Entre os CEOs, esse número é 3 vezes maior! E o narcisismo é praticamente a antítese do movimento em busca dos recursos internos do autoconhecimento.
Uma personalidade que pode ser funcional, mas não autêntica
Um dos estudos que nos ajuda a entender a importância do movimento de investigação interna é a Teoria do Apego. Trata-se de um estudo realizado no pós-guerra pelo psicanalista John Bowlby e que descreve a necessidade humana de laços de cuidado nos primeiros anos de vida para desenvolver uma segurança sadia ao longo da vida. Conforme a condição do entorno da criança, o tipo de padrão de apego pode ser seguro, ansioso, ambivalente, evitativo ou desorganizado, com consequências na formação da personalidade e na forma que o indivíduo posteriormente interpreta a realidade e constrói o seu caminho de vida.
Infelizmente, seja por razões socioeconômicas, culturais ou políticas, uma grande parte das pessoas cresce com um déficit importante de apego seguro. Isso tem impacto ao longo de toda a vida e muitos tornam-se pouco funcionais e desestruturados para construir uma vida digna, autônoma e feliz. Mas, mesmo aqueles que são afortunados com um apego mais seguro na primeira infância ainda assim constroem suas personalidades adaptando-se inconscientemente ao contexto externo, desenvolvendo assim uma personalidade que pode ser muito mais funcional e estruturada, mas carecendo de uma autenticidade que só pode vir com a maturidade.
Assim, a partir da adolescência em diante, quando começamos a ser mais autônomos nas nossas escolhas, procuramos de todas as formas realizar coisas que reforcem nossa personalidade e o nosso script. De certa forma, ainda estamos tentando manter segura aquela criança que fomos, com senso de pertencimento e confiança, mas fazemos isso com base naquilo que inconscientemente achamos que nossos pais (ou cuidadores) não nos deram devido a alguma falta fundamental que cometemos. O nosso “pecado original”. Nossos relacionamentos, nossas carreiras, nossos projetos de vida surgem dentro deste enredo.
Chega um determinado momento na vida quando damos conta que os nossos scripts estão fadados ao fracasso. Por mais sucesso externo que possamos ter, vemos que temos diante de nós um dilema: ou abafamos essa voz interior que nos pede por uma mudança ou damos um passo incerto em direção ao desconhecido em busca de nós mesmos.
No primeiro caso, a tragédia tão repetida por tantos, escolhemos o caminho de dobrar a aposta nas conquistas externas: mais sucesso, mais dinheiro, mais juventude, mais fama e a busca da “imortalidade”. Esse é o caminho que só amplia a crise pessoal e a planetária, da destruição do meio ambiente, da desigualdade e de falta de sentido.
No segundo caso, por mais dolorido que possa ser tomar contato com nossos scripts originais, o sentido de sucesso é ressignificado e encontramos a nós mesmos na busca interior. Abre-se uma vida nova, muito mais autêntica, estimulante e regenerativa.
Eu acredito que as organizações precisam começar a olhar seriamente para este tipo de impacto e estimular o autoconhecimento e o amadurecimento interior das pessoas. Isso sim será revolucionário e inovador.
Abaixo, confira algumas dicas de filmes e livros que nos convidam a refletir sobre esse tema:
Filmes:
– “O Começo da Vida”, de Estela Renner e Produção de Maria Farinha Filmes (na Netflix).
– “Duas Vidas” , de Jon Turteltaub (na Disney Plus e Google Play).
– “Billy Elliot”, de Stephen Daldry (Google Play e Apple TV).
Livros:
– “Maternidade Encontro com a própria Sombra”, Laura Gutman (Editora Best Seller).
– “Apego e Perda: Apego – A Natureza do Vínculo (Volume 1)”, Jonh Bowlby (Martins Fontes).