Paçoca com farofa

Ao terminar cada dia penso: “hoje consegui ser antirracista”, escreve José Renato Domingues para a Today

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O título não é uma sugestão de combinação gastronômica nem uma receita culinária – um dia, quem sabe, a Think Work abre uma linha de negócios para esses temas e eu já me candidato!

Essas duas palavras, no entanto, refletem uma herança social poderosa que temos no Brasil e que, mesmo assim, é ignorada e tem baixa penetração social, nas famílias, nas empresas, na mídia e na literatura. 

Falo sobre a riqueza da cultura indígena que nos deu a paçoca e a multidimensional cultura africana que nos ensinou a falar a palavra e a comer farofa. 

Minha experiência recente de conhecer pessoas de ambos os grupos, em um evento no sul da Bahia, me fez perceber o poder da ancestralidade e da originalidade delas e, mais ainda, da combinação única das duas que acontece aqui no Brasil.

No encontro, cuja abertura foi feita de forma brilhante pela Djamila Ribeiro, aprofundei minha consciência sobre a minha branquitude e meus privilégios, cujo despertar se deu lendo um de seus livros, o “Pequeno Manual Antirracista”. A generosidade do olhar da Djamila é que me fez reconhecer meu lugar de fala nesse tema. 

Já o encerramento foi conduzido pelo aprendiz de pajé Ubiraci Pataxó, um homem corajoso, líder local na sua aldeia com impacto global em suas viagens. A cultura dos indígenas é muitas vezes vista pelos brancos como primitiva, mas eu aprendi a perceber o quanto é vibrante, esteticamente sofisticada, ética e de uma invejada intimidade com a natureza. 

Entre os dois, diálogos ricos sobre inclusão, diversidade, linguagem, construção social e protagonismo. O fortalecimento das comunidades e independência financeira foram apresentados como papel das empresas e sua responsabilidade como agentes de mudança. Preto Zezé, Raull Santiago, Nathalia Arcuri e Hugo Bethlem nos guiaram por suas vidas, mostrando o que fazer quando mudamos nossa forma de pensar.

Bom, após o evento, refleti muito sobre o extenso conhecimento dos povos originários. Por exemplo, sua forma de estabelecer grupos de até 180-200 pessoas para que todos saibam quem são, quais suas habilidades e como podem se manter unidos e coesos em torno de um propósito comum. Assim se estabelecem as aldeias e comunidades indígenas. 

Mas elas têm sofisticadas redes de comunicação com outros grupos e há uma constante troca de conhecimento que é totalmente invisível para nós, no mundo urbano corporativo, mas que nos ajudaria a enfrentar todos os nossos desafios de liderança, de organização e de eficiência. Um convite aos leitores CHROs para repensar seus modelos organizacionais e seus mecanismos de comunicação.

Há múltiplas camadas sob as quais estão milhares de anos e aprendizado contínuo. Minha nova visão, assumindo minha ignorância total sobre os indígenas brasileiros e sua organização, é que errei até agora em buscar nos livros e nos gurus corporativos internacionais as soluções que precisava. 

Já passou da hora de levarmos esse conhecimento para o mundo e trazer o mundo para aprender com os nossos povos ancestrais. 

Diferente do caso indígena, a cultura negra está mais pronta, mais próxima, mais palpável e acessível. É preciso vencer os preconceitos e o racismo para incorporá-la em nossos negócios, em linguagem, símbolos e rituais empresariais. A sua coragem e resiliência são inspirações para o presente e para o futuro.

Essa também é uma responsabilidade que assumo e convido a todos a assumirem. Ter consciência sobre os meus privilégios e meu racismo, que guia meu comportamento cotidiano. Não sou racista porque quero e escolhi, assim como não me sentia privilegiado até ter mais consciência sobre isso. 

O meio em que estou e as pessoas com as quais interajo reforçam esse comportamento. Por isso, preciso acordar e dizer para mim mesmo que o dia que começa é mais uma oportunidade de mudar. Ao terminar cada dia penso: “hoje consegui ser antirracista”.

A partir dessa experiência no sul da Bahia com tanta gente interessante e diversa, meu compromisso é de me misturar mais com quem eu não convivo e aprender mais com quem eu não conheço. Postura de aprendiz é o que mais quero ter nesse tema. 

A recompensa, pude experimentar durante esses poucos dias no #KESSummitt. Ela tem um sabor novo e delicioso de misturas inusitadas que só sentimos quando experimentamos. Tem uma textura que precisa de algum tempo para ser apreciada. Umas cores lindas que entusiasmam a gente a buscar mais.

Não precisamos mais de receitas de fora. Temos muita riqueza no nosso País que precisa ser mostrada ao mundo. Nas nossas florestas, rios e matas, mas também em nossas cidades e suas periferias – lugares distantes do mundo corporativo que nos isola e nos deixa com o mesmo gosto na boca que já estamos acostumados. 

Saia e se aventure, convide mais gente, explore as diferenças e saboreie com entusiasmo o que aprender. Use o pilão da paçoca para triturar e a colher de pau da farofa para mexer… Depois, incorpore, misture e mude sua forma de ser.

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<strong>José Renato Domingues</strong>
José Renato Domingues

É conselheiro, executivo e investidor anjo em startups. Atua como conselheiro de administração em grandes empresas e é vice-presidente corporativo na holding da CTG. Escreve sobre as mudanças na sociedade para a Think Work.

Comentários Paçoca com farofa

  1. Hugo Bethlem disse:

    Muito boas suas colocações e reflexões. A história que temos que aprender, primeiro a respeitar e admirar e depois a seguir, dos povos ancestrais nos mostra sua sabedoria milenar, muitas gerações antes de nós darmos conta de sermos um país e, mesmo com tantas perseguições e injustiças cometidas por nós, brancos conquistadores, na verdade não conquistamos nada e eles continuam aqui nos ensinando. Basta querer aprender.

  2. Pedro Frascino disse:

    Muito feliz e apropriado o título de paçoca com farofa, ele sintetiza a riqueza que conseguimos na nossa culinária com a integração do indio, do africano, do asiatico, do arabe, do europeu. Um aprendizado valioso dos resultados que conseguimos quando pomos foco no que nos aproxima.

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