Thomas Nader reflete sobre a jornada de transição de gênero, a luta pelo direito ao próprio corpo e a necessidade de políticas públicas inclusivas
Nos últimos meses, decidi dar mais um passo na minha jornada de transição: realizar uma histerectomia, a remoção do útero e colo do útero. Tinha certeza de que queria realizar esse procedimento há muito tempo. Já se passaram nove anos desde que comecei a hormonização e quase oito desde a minha primeira cirurgia, uma mastectomia – a retirada das mamas. Porém, conseguir a aprovação para fazer essa intervenção, que me deixaria mais à vontade com meu próprio corpo, não foi nada fácil.
A busca por um médico compreensivo, que não exigisse um documento jurídico validando minha decisão, foi um desafio. Só esse pedido já considero uma violação dos meus direitos e do poder de decisão que tenho sobre meu próprio corpo. Felizmente, encontrei um médico incrível que respeitou e apoiou minha decisão de fazer a cirurgia. No entanto, achar o médico não seria a única barreira.
Apesar de todos os meus documentos estarem no masculino, precisei fornecer ao plano de saúde laudos de uma psiquiatra, um psicólogo e uma endocrinologista que acompanham meu caso, a fim de comprovar que eu estava plenamente ciente e em condições de tomar minha decisão. Afinal, esta é uma cirurgia que não tem “volta”. Foram meses para conseguir esses laudos.
Além disso, tive de recorrer a um advogado para ter orientações sobre como contestar a negativa do plano de saúde, acionei o Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) e a ouvidoria do plano várias vezes, e registrei reclamações na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Recentemente, outro caso de negação de uma cirurgia no Brasil ganhou destaque internacional. O Brasil será julgado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos por recusar cirurgia de afirmação de gênero a uma mulher trans de Campinas, interior de São Paulo.
Desde 1997, a cabeleireira Luiza Melinho tentou, sem êxito, realizar o procedimento de redesignação sexual em um hospital vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo após passar pelo programa de adequação sexual, em 2001, a cirurgia foi cancelada de última hora, o que agravou o seu estado de depressão. A luta continuou e ela conseguiu realizar a cirurgia em 2005, em um hospital particular, depois de fazer um empréstimo. Em janeiro deste ano, o caso tornou-se mundialmente conhecido e ainda não foi resolvido.
O Sistema Único de Saúde do Brasil é notável. Oferece tratamentos avançados, fornece gratuitamente inúmeros tipos de medicamentos e até mesmo cirurgias complexas, como transplantes, sendo uma referência no mundo todo.
Porém, mesmo em 2024, todos dos dias pessoas trans têm seus direitos negados e seu acesso dificultado. Isso evidencia a necessidade urgente de políticas públicas mais inclusivas para garantir que os direitos de todos sejam respeitados.
Afinal, até onde vai o meu direito sobre meu próprio corpo, se constantemente preciso provar que estou seguro com a minha identidade de gênero?