Conhecimento enquanto commodity: risco para o futuro do trabalho

Para a Today, Patrick Schneider propõe uma reflexão sobre os riscos de assumirmos o conhecimento enquanto commodity

Enquanto as discussões em torno do futuro do trabalho circundam a invasão tecnológica no mercado, um outro elemento, muito pouco falado e refletido, demonstra-se como um risco ainda mais poderoso nos estudos sobre os novos capítulos laborais no planeta: a commoditização do conhecimento humano.

Commodity, em uma tradução literal do inglês, significa mercadoria. Entretanto, o termo passou a ser atribuído a matérias primas produzidas em série com muito pouca ou nenhuma distinção entre os diferentes produtores, por conta de sua qualidade e características muito similares.   

Neste sentido, pensarmos que a capacidade profissional e toda a potência humana poderia ser reduzida a uma commodity traria consequências terríveis para toda a humanidade em um ambiente futuro.

No início, os debates sobre a adoção de robôs giravam em torno de trabalhos repetitivos e possíveis de serem replicados de modo mais eficaz em que muitos seriam os empregos extintos. Esta afirmação se concretizou em alguns cenários, como as atividades em torno da circulação de dinheiro, por exemplo.

Pouco a pouco a figura habitual do trocador ou cobrador no transporte coletivo foi desaparecendo nos maiores centros urbanos brasileiros, substituída por equipamentos capazes de ler o pagamento de passagens através de cartões magnéticos. 

O curioso é que a habilidade em matemática tornou este tipo de concurso público ou processo seletivo mais desafiador do que aqueles aplicados ao motorista. E em alguns casos, esta função era mais bem remunerada que o condutor do veículo. Pois bem, aquelas cidades onde este papel ainda não foi 100% suprimido vem caminhando para sua extinção.  

A medida que as discussões foram evoluindo, passamos a nos surpreender com a capacidade das máquinas realizarem atividades ainda mais complexas, como quando passaram a compor músicas, elaborar artes plásticas aptas a ganhar prêmios em concursos de arte e, mais recentemente, desenvolver montagens teatrais, textos poéticos e sonetos líricos com uma absurda competência.

Tais fatos, inclusive, geraram uma greve dos roteiristas de Hollywood, ganhando a adesão de todos os profissionais deste centenário ecossistema artístico. 

A diferença mais importante entre o exemplo dos cobradores e dos artistas é que enquanto a indústria da mobilidade humana buscou meios de baratear seus custos e maximizar ganhos, a segunda visou gerar disrupção em um segmento até então desempenhado exclusivamente para emocionar outros seres humanos a partir do compartilhamento de traços artísticos individuais. 

Eu sempre tomo o cuidado de lembrar que ainda que a arte seja uma válvula de escape para muitas pessoas que utilizam a dança, um instrumento musical, as letras ou as tintas, existem inúmeros profissionais das artes que colaboram para a evolução de nossa sociedade através do impacto causado pela sua forma de utilizar os mesmos elementos acima descritos. 

Imagine um mundo sem Picasso, Tarsila, Da Vinci, Shakespeare, Alighieri, Chopin, Bach, Hendrix, Miles Davis, Dylan, Chico, Caetano e Gil, Vinicius de Moraes, Mario Quintana, Sebastião Salgado e tantos gênios que já transitaram por este mundo gerando obras impressionantes e que desafiaram o status quo, expandindo nossa capacidade de percepção sobre o mundo ao nosso redor.  

Aplaudir a expansão do uso da inteligência artificial sem medir consequências pode ser tão perigoso quanto a ideia que temos da infinitude do meio ambiente ao nosso redor. Um caminho sem volta para a escassez do pensar. Em minha visão, tais mudanças sociais precisam ser debatidas frente os impactos traduzidos por estas mudanças.

Tornar a arte uma commodity diz muito sobre aceitarmos banalizar capacidades humanas. E esta conduta diz muito sobre a substituição cognitiva das pessoas em outras esferas laborais.

De modo nenhum minha intenção enquanto pesquisador sobre o tema futuro do trabalho é negar ou lutar contra a evolução da inteligência artificial generativa ou o aprendizado de máquina, um caminho praticamente sem volta.

Mas nos voltarmos somente para as necessidades da evolução em termos tecnológicos nos afasta de temas igualmente necessários, como o meio ambiente, a fome, as guerras e o desemprego. Acompanhando de perto o futuro das profissões e seus empregos verdes, ou o futuro dos escritórios com seus nômades especializados, a área do futuro do trabalho poderia colaborar plenamente com a questão, o que talvez não seja interessante para a indústria algorítmica. 

Dissociar o futuro do trabalho da visão simplista proposta pela pirotecnia administrada por bits e bytes é uma missão pessoal enquanto pesquisador. Não me parece um caminho viável anularmos a complexidade humana e nossa potência para solucionar temas complexos, sem simplesmente, os resolver, mas sim os interpretar e enxergar alternativas capazes de elevar em muito nossas possibilidades enquanto civilização. 

Para que o futuro do trabalho seja uma nova era de oportunidades exponenciais para todos ao redor da Terra, temas como estes não podem ficar em segundo plano ou no final da lista de prioridades de quem desenvolve máquinas e aplicações tecnológicas. Para que isso ocorra de modo bem-sucedido, se faz necessário mantermos as pessoas no centro desta agenda e não como um acessório que precisa correr atrás das novidades para as entendê-las e tentar interagir de alguma maneira com tudo o que deveria ser elaborado para a satisfação de suas necessidades. 

Acredito em um ambiente de expansão da atuação humana, respeitando seus conhecimentos à medida que a evolução de redes e sistemas complexos avançam ao redor do mundo, mas sem nunca substituir o protagonismo do profissional e sua contribuição potencial com o mundo ao seu redor.

Reduzir o trabalho gerado pelo trabalhador a um subproduto nesta dinâmica é deixarmos de evoluir regressando a conceitos taylorista do homem arado, superado em muitas décadas justamente pela expansão da consciência e evolução intelectual do ser humano. 

Trabalho não é mercadoria e conhecimento não é commodity

Trabalho é potência transformadora e ampla manifestação de nossa presença na Terra.

<strong>Patrick Schneider</strong>
Patrick Schneider

Gestor de Recursos Humanos LATAM com 20 anos de atuação em companhias globais, autor e pesquisador na área de futuro do trabalho.

logo-today
Sua conexão com os principais RHs do país. Assine grátis

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.