Ensaio sobre a soberba do cargo

Carlos Netto explora a relação entre poder, narrativa e soberba, analisando como a negação da crítica e a ilusão do discurso podem distorcer a realidade e fragilizar a credibilidade

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A falta de sentido surge das fraturas entre o que é dito e o que é realizado, pois os dois não podem estar dissociados. O discurso se adapta às circunstâncias, mas a ação permanece. Está lá, se impõe. Basta ter olhos para vê-la.

Questionar uma narrativa construída por outra pessoa, especialmente por quem se julga poderoso, é uma das maiores expressões da autonomia. A crítica pode ser verbalizada ou silenciada. Às vezes, por autoproteção, fica confinada ao íntimo. Outras vezes, transborda em impulsos que rompem todas as barreiras do “deixa para lá”. De uma forma ou de outra, os filtros do sentido permanecem e nos preservam. Em outras palavras, são eles que garantem nossa integridade perante nós mesmos.

Com o tempo, perdemos o receio das consequências da crítica aberta. Isto é, nos tornamos menos submissos. Negar nossa capacidade crítica é desonesto, bem como nos priva de uma das maiores conquistas da maturidade. Como bem disse Hélio Pellegrino: “amadurecer é perder o orgulho”.

Talvez, um dia, os líderes das organizações percebam que a narrativa não comporta tudo. Mais do que inspirar, ela muitas vezes causa estranheza e, além disso, não resiste ao teste da realidade. 

Aristóteles definiu a retórica como a “capacidade de persuadir” — uma antítese da dialética. Todos procuram sustentar suas teses e, a qualquer custo, defender sua própria visão. No entanto, a retórica sempre estará sujeita à razão crítica do outro. No fim, duramos mais pelo que fazemos do que pelo que dizemos.

Além disso, nenhuma construção narrativa se sustenta se, inconscientemente, não há crença genuína no que se afirma. O verdadeiro drama é a tensão de acreditar no insustentável. Olhar-se no espelho nunca é fácil. O ego precisa do aplauso da claque, assim como se alimenta da ilusão.

A realidade sempre bate à porta e pode ser implacável. Mas ela não chega sem aviso; seus sinais estão por toda parte, interrompendo os devaneios do discurso e arrastando o mundo imaginado ao limite, sem consideração pelas consequências.

Quando a realidade finalmente se impõe, o discurso precisa mudar – mas nunca com um pedido de desculpas. Sempre haverá um motivo externo para justificar tudo: um algoz, um inimigo, um interesse suspeito. E, assim, toda crítica passa a ser vista com desconfiança.

A passividade fatalista, que antes cegava, é sacudida. Aqueles que nunca foram protagonistas do poder agora carregam o peso das consequências de uma realidade que sempre esteve diante deles. Aliás, ignorá-la nunca foi uma opção. Afinal, vivem o real, pisam na terra e contam os centavos. Não se iludem com discursos opacos. Mesmo que, por prudência, não os contestem abertamente. Sabem bem o quão implacável o poder pode ser.

O realismo é essencial e fundamento da credibilidade. Ou seja, não há cultura saudável sem significado, organização e competência. Ela não floresce no faz de conta, nem nos excessos de maquiagem simbólica. Exige compromisso com aquilo que se diz ser.

A soberba busca iludir e prolongar ao máximo os privilégios do cargo, especialmente quando ele não foi conquistado por uma história crível e coerente. Os excessos distorcem sua legitimidade e o afastam daquilo que deveria representar.

Freud defendia que a soberba é um aspecto central do narcisismo, mas também uma defesa contra a ansiedade e complexos não adequadamente tratados. Seu efeito mais grave, de acordo com ele, está em negligenciar ou ignorar a dor do outro. 

A sala de trabalho é sempre grande demais e solitária para um narcisista, que precisa das massas para sobreviver. As decisões mais urgentes, necessárias e relevantes, não são tomadas nesse ambiente narcísico.

O antídoto para a soberba? Diria que está em prestar mais atenção no quanto a crítica pode ser mais útil do que os aplausos.

Termino sem ponto final e com a licença das regras ortográficas. É do leitor o poder do sentido que deseja construir se leu até aqui. Parafraseando José Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Sim, repara no discurso e na prática

Carlos Netto

Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e autor de “A arte nos sonha”. Foi diretor do Banco do Brasil por 11 anos, além de membro de Conselhos de Administração de várias organizações.

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