“Limites não tiram nossa potência; eles nos dão força para realizar dentro do espaço planejado”, escreve Carlos Netto, professor do Mackenzie
Existem limites na vida corporativa ou estamos sempre buscando ir além? Vivemos uma reta infinita ou temos consciência do abismo à nossa frente? Lembro de um gestor que dizia: “Quem tem limite é município”. Ilusão.
Clarice Lispector dizia não acreditar em limites, esquecendo-se de que era humana. Pensar nos nossos limites é entender o risco da onipotência como uma das maiores tragédias humanas. A palavra vem do latim “omni” (todo, completo) e “potens” (poderoso). Onipotência é a sedução de achar que podemos realizar qualquer atividade, mesmo as que fogem ao nosso controle.
A tentação da onipotência aparece em muitos mitos. É um atributo dos deuses, mas uma pretensão humana. No Éden, a serpente propõe: “Ser como Deus, sabendo o bem e o mal”. Aqui, a insatisfação com a condição humana (“ser como Deus”) e a ilusão de poder total, apesar de sermos feitos “à imagem e semelhança do Criador”. Isso não bastava.
Aquiles, banhado nas águas do rio Estige, ignorava a origem de seu poder. Seu calcanhar, não tocado pelo sobrenatural, era sua fraqueza. Aquiles, do grego “achos” (dor, aflição), representava essa fragilidade. Haveria dor maior ao não reconhecer que, diante da estrutura tão blindada e potente do seu corpo, habitava também sua fragilidade? Ele a ignora porque não compreende que, em si, há limites.
O que dizer de Tântalo, o próspero rei de Corinto, que queria ser igual aos deuses. Tântalo convida todos para seu palácio e oferece a carne de seu filho em um banquete. Zeus, sabendo de tudo, restaurou a vida do filho e condenou Tântalo e seus descendentes à eterna insatisfação.
As três histórias, fruto da elaboração humana na relação com o poder sobre-humano, mostram que sempre falta algo.
Ultrapassar limites na vida pessoal e profissional reflete a pulsão empreendedora de não aceitar barreiras. Se existem, estão lá para serem superadas. Mas barreiras e limites nos protegem.
Um amigo sabiamente alertou: “Enquanto você estiver nos limites que estabeleceu, será uma solução. Rompa esses limites e poderá se tornar um problema”. Leia isso novamente e aplique à sua vida. Faz sentido?
A primeira questão aqui é ter consciência dos próprios limites. Não podemos tudo, por melhor que seja a intenção. Limites não tiram nossa potência; eles nos dão força para realizar dentro do espaço planejado.
Não confunda sua história pessoal, envolvendo diversas áreas da existência, com a história da organização em que atua. É preciso ver limites em ambos, pois não há uma simbiose de dois seres distintos – uma pessoa física e outra jurídica – que se confundem. A primeira sempre sairá perdendo. A força centrífuga da instituição é poderosa.
Todo o cuidado é pouco, inclusive para o bem da própria instituição. Organizações que não compreendem os limites dos colaboradores podem provocar crises. Colaboradores que confundem seu poder com o institucional se perdem quando a ruptura vem. E ela virá.
Somos movimento, processo, espaço e tempo. Aquilo que julgamos ser habita o ideal e o real. Estaremos sempre “vindo a ser” e isso deve oferecer alertas para que não sejamos levados pela correnteza.
Estabelecer limites resulta do autoconhecimento. Como Eduardo Giannetti lembra no livro Auto-engano, precisamos mentir menos para nós mesmos, como Aquiles deveria ter feito. Não se deixe seduzir pela onipotência, como Adão e Eva. Reconhecer limites não reduz nosso valor; é vital para nossa identidade. Mas, qual o limite? Que instrumentos usamos para defini-lo?
Cada um habita seu mundo e interage com o espaço de forma única. Não há receita para entender nossos limites. Fazer-se conhecer não diz respeito apenas como nos colocamos diante do outro ou de situações em que somos desafiados, como na vida profissional. Há um caminho interno. Por me conhecer, sei até onde vou. Por ter consciência do que sou, escolho ultrapassar ou não determinados limites que julgo relevante na construção da minha própria existência.
Estabelecer limites não significa ausência de busca ou abrir mão das potencialidades. O escritor Manuel de Barros dizia: “A reta é uma curva que não sonha”. Viver não é uma reta ao infinito; tem retrocessos, paradas e mudanças de direção.
Aristóteles, no livro IV da Física, entende que o tempo existe porque temos a mente para medi-lo. O tempo depende da nossa consciência. Milton Santos, nosso filósofo-geógrafo, definiu a natureza do espaço a partir do olhar humano. Sem o olhar humano, o espaço é vazio. A qualidade do espaço depende das técnicas que aplicamos. Se será bom ou ruim dependerá daquilo que dele fazemos por meio das nossas escolhas. Gosto de pensar que tempo e espaço não devem subjugar a existência, nosso maior patrimônio. Medir o tempo e perceber o espaço requer estabelecer limites. Aristóteles e Milton Santos nos dão uma bússola: “saiba.” Saber-se para melhor interagir com tempo e espaço. Caso contrário, estamos perdidos na infinitude ilusória.
A consciência e o autoexame são condições para responder ao tempo e espaço da nossa existência, vencendo a ilusão da onipotência. Chego numa etapa da vida que entendo melhor os limites que me dei. Eles dizem muito sobre mim. Nem sempre foi assim. Talvez isso tenha me levado a viver boa parte do meu tempo em uma sala de aula com jovens.
Fiz uma longa curva porque o fim da estrada é perder uma das maiores conquistas que podemos construir ao longo da vida: nossa autonomia. Como nos adverte Albert Camus: “A liberdade sem limites é o oposto da liberdade”. Parafraseando o escritor francês: “A vida sem limites é o oposto da vida”.
Ótima reflexão! Importantíssimo reconhecer os seus próprios limites para conseguir trabalhar dentro das suas capacidades tudo aquilo que for possível. Um carro com motor potente, porém sem freios, bate de frente com o primeiro muro que encontrar.